O costume do cachimbo deixa a boca torta

Postado por Geraldo Honorato
Conta um certo adágio popular que, em época de eleição, os políticos beijam meninos catarrentos aos montes, comem infinidades de bolos solados e, sem esboçar a menor repulsa, pisam na mais nojenta lama em busca do produto mais desejado do momento: o voto. E foi assim, em uma das caçadas cotidianas ao “ouro de Moscou”, que um experiente candidato a vereador – vencedor e perdedor de muitos pleitos – rendeu subsídios à história relatada abaixo.

Em tempo de vacas magras e com baixa popularidade junto ao eleitorado, Roy Corrói, depois de quase uma década fora do poder, finalmente resolveu voltar à cena política. Como bom candidato de oposição, tinha clareza de que a periferia era o melhor lugar para “dar pau” nos governantes da vez, afinal é lá, na escória, onde as diferenças sociais e a má prestação dos serviços públicos são mais latentes. Portanto, para o objetivo em questão, valia regra do “quanto pior melhor”. Diante dessas condições objetivas, o discurso inflamado de Martelada, apelido conferido na época em que era agitador do movimento operário, fluía com naturalidade e soava como música aos ouvidos daquela gente insatisfeita por natureza.

Do alto do velho carro de som, uma quase finada Caravan modelo 1976, que também servia de palanque improvisado, Roy Corrói observava atentamente a expressão de cada um dos espectadores. A platéia não era numerosa, se resumia tão somente a uns 30 gatos pingados, mas, como pontuou um dos futuros assessores da eleição ainda incerta, já havia sido pior em outras épocas. Além do mais, a tendência natural é de que cada ouvinte passasse a ladainha proferida adiante, contagiando amigos e familiares.

A peleja político-partidária daquele dia estava praticamente concluída, restava apenas - encerrada o “parlação” – esperar os cabos eleitorais concluírem a distribuição dos panfletos confeccionados às duras penas na gráfica de um amigo e ex-signatário dos ideais revolucionários de outras épocas. De repente e oportunamente, chega um dos “frentes de massas” trazendo a informação de que um dos moradores mais populares e respeitados é um antigo admirador de Martelada. Mais do que isso: deseja conhecê-lo, a fim de expressar admiração e (por que não?) organizar uma grande e densa reunião de apoio.

O ímpeto foi de conhecer logo o “oráculo comunitário” e, a partir disso, iniciar a colheita dos frutos políticos que isso – mais tarde - renderia, mas Corrói tinha experiência suficiente para saber que cada coisa acontece no tempo certo. Ora, o bem se executa aos poucos, deglute-se com frieza e parcimônia. Lembrou-se que o candidato a prefeito da sua coligação faria um comício naquele reduto de miseráveis dali a uma semana. Essa seria, então, uma excelente oportunidade de mostrar liderança e impor respeito.

Afastou de prontidão a idéia de conhecer o velhusco naquela hora e tratou, através de “procuradores”, de ajeitar as bases para que o encontro acontecesse em sete dias, logo depois do comício do seu prefeiturável, um sujeito polido, sério e que não parecia ter a menor vocação e nem saco àquela dimensão política, tal era a sua indiferença em algumas situações. Sabia-se, inclusive, por todos os envolvidos na campanha que ele não conseguiu estabelecer uma relação amigável com martelada. Eram muito diferentes e estavam em patamares distintos. Um estava em pleno gozo do mandato de deputado federal, disputando circunstancialmente a prefeitura de uma cidade com a qual não tinha identidade. Já o outro, que também havia experimentado a glória e respirado o ar rarefeito dos “que ficam de salto alto”, travava uma briga incansável para voltar a ser “alguém” na vida.

Passados sete dias, lá estavam todos espremidos no apertado palanque de pouco mais de cinco metros quadrados. Cada candidato a vereador matutando a melhor forma possível de utilizar os míseros dois minutos que cada um deles tinha à disposição. Basicamente, o tempo dava somente pra fazer uma brevíssima saudação e informar o nome e o número pelo qual cada um concorria a uma cadeira na câmara municipal. A mediocridade era tamanha que alguns sequer conseguiam desempenhar com desenvoltura a tarefa tão risível.

Todos eles faziam, em outras palavras, figuração para o candidato a prefeito, o grande orador e estrela da noite. Roy Corrói estava firme e já havia combinado a visita, logo após o comício, à casa do ancião que ajudaria a elevar o seu prestígio junto ao staff geral da campanha. Horas antes de subir no palanque, ficou sabendo que o seu futuro apoiador perdeu visão quatro anos antes, dias após completar 72 anos de idade.

Encerrado o comício, realizado com relativo sucesso e embalado ao som do jingle ambientado em melodia arrochante, a trupe política, incluindo a equipe de marketing eleitoral, dirigiu-se para a casa do velhinho, a esta altura do campeonato já se sabendo chamar de Seu Herculano.

O portão de zinco da casinha simples de muro chapiscado estava escancarado e era a senha para que todos entrassem e vissem a terna cena do abraço de Seu Herculano no seu ídolo. Roy Corrói deixou que a sua corda de caranguejos, autodenominada assessoria, fizesse as honras da casa. Sentado em uma cadeira de ferro de construção, ornada em fios de plástico da cor verde, o velho Herculano espreitava cegamente a cena, transmitindo segurança e a sabedoria peculiar aos amigos-irmãos do tempo.

Feita toda a cena, um desses relações públicas naturais da vida, em outra situação geográfica chamado de “simidão”, apressou-se em efetivar o tão esperado encontro.

- Seu Herculano, trouxemos o vereador Roy Corrói para conhecer o senhor.
- Ô, meu fio, cadê a ele? Esperei tanto por esse momento – disse o ancião com a voz levemente afetada pela emoção.
- Vou dar um abraço nele. Se aproxime, por favor – completou.

Apreensivo, Martelada deu três passos à frente e ergueu a mão direita para cumprimentar o admirador. Querendo se certificar de que estava realmente ao lado do político admirado, Seu Herculano perguntou novamente se era o candidato que estava ali, a poucos metros dele. Ouviu um sim coletivo.

Encorajou-se e deu um tapa cinematográfico na face de Corrói, que, sem entender nada, ficou inicialmente sem reação. Em um segundo momento, xingou - de nomes impublicáveis - o assessor que armou o encontro. Saiu apressado, sem saber que jamais sairia da memória coletiva daquele povo. Foi o escolhido, até injustamente, para o dia do troco.

Isso mesmo: o dia em que o povo miserável deu um tapa na cara dos políticos. Poderia ter sido com qualquer um, mas quis o destino que o escolhido fosse Roy Corrói, que dias depois ganhou a eleição e, de quebra, aprendeu que a horda tem lampejos de consciência e costuma selecionar símbolos de vez em quando para cravar – entre tapas e falsos beijos – a máxima popular que diz “Aqui não. Basta!”.
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